Estória´s da aviação, pela voz da Hospedeira,...

Era para ser um voo simples.Saíamos de Lisboa - Portugal às 21h para chegarmos a Havana – Cuba pelas 5/6h e voltávamos para casa ainda nessa madrugada.

Mas as coisas complicaram-se...

A meio do Atlântico o Comandante recebe a informação de que o Furacão Erika subiu na escala, tornando-se agora perigoso também para quem voa.Pede-nos para prepararmos a cabine para um eventual acidente e estarmos alerta para qualquer coisa que possa acontecer.Nós aprontamo-nos, mas no entanto, após duas horas de angústia passadas, ainda nada de Erika.

Pelas 4h a Susana dá ordens para servirmos o pequeno almoço.Em cada carrinho vão duas pessoas, uma à frente e outra atrás – uma dá as bandejas e o outro as bebidas escolhidas. Nas pontas do avião, ficam os outros colegas que em seguida vão servir o chá e o café.Eu estava mesmo a servir à frente, quando o avião desceu a pique cerca de 10.000 pés !! (cerca de 3 kilómetros).

Senti o corpo a projectar-se num sítio qualquer, e os tabuleiros das pessoas todos a colarem-se no tecto do avião. Tudo rodopiava no meio da cabine do avião e por segundos achei que íamos cair... assim... a pique.O avião estava completamente descontrolado.As pessoas num silêncio mórbido. E tudo aos trambolhões na cabine. Bagageiras abertas e as malas a caírem, as bandejas a voarem, as garrafas da coca-cola a entornarem, guardanapos no ar.. e tu abanava, tudo abanava!!!

Levantei-me do chão e corri para o fundo da cabine, saltando tudo – carrinhos, bancos, passageiros, e mais que houvesse!! Vejo o Francisco no chão e corro para ele. Tem sangue no rosto, mas nada de grave, e lembrando o voo da Madeira – não é hoje amiga, não é hoje!!

Levantamos a correr e começamos a tentar fechar tudo no avião: gavetas, armários, bagageiras!!! É um pânico!É um pânico! É um medo tão grande que vai para lá do choro...

Eu corro a empurrar um carrinho que está no corredor do avião. Só penso que tenho de o arrumar. É um peso bruto!! Tudo em ferro e só tenho medo que acerte em alguma criança. À medida que o empurro vou chamando pelos meus colegas e respondendo às suas vozes. Está escuro, o avião estabilizou a altitude, mas a turbulência continua fustigadora. Um carrocel.Empurro o carro até que encontro o sítio onde pertence, mas a turbulência e o seu peso não me deixam arruma-lo. Tudo abana à minha volta. Eu empurro, mas sinto-me sem forças, e assim que cedo, o carro ganha balanço projectando-se contra mim e empurrando-me para o chão.Sinto uma dor, vejo uma coisa cheia de pintinhas brancas e quase desmaio.

Vejo os meus colegas aos gritos, a tentarem ajudar os passageiros e a cabine silenciosa.Um silêncio escuro, mórbido, de medo. Quando é grave, não há gritos dos passageiros... há silêncio.As luzes voltam e eu posso ver que estou encurralada entre o carro e um armário do avião. Grito pela Susana, mas é a Rita que me ouve e tira o carro de cima.Não tenho sangue, mas a dor no braço direito é forte. Como temos todos o curso de Socorristas do INEM, a Rita imobiliza-me o braço com a gravata da farda e seguimos para ajudar toda a gente.

Agora o avião já estabilizou, as luzes voltaram totalmente e a turbulência passou.Há algumas pessoas feridas, mas muitas mais cheias de ovo mexido na cabeça, cara e ombros.Não consigo deixar de me rir!!Dói-me o braço, apanhei um "granda cagaço", e não me consigo deixar de rir de ver aquele avião com ovos por todo o lado, coca-cola por toda a parte, malas no chão bagageiras abertas, passageiros brancos como a cal!!!!Arrumámos tudo, limpámos tudo, organizámos tudo e seguimos viagem.

Era para ser um voo simples.Saíamos de Lisboa - Portugal às 21h para chegarmos a Havana – Cuba pelas 5/6h e voltávamos para casa ainda nessa madrugada.

Mas como se deu aquilo, o Comandante faz uma reunion call explicando que o Erika mudara de rumo no exacto momento em que passávamos, e nós ainda apanhámos os restos dos ventos ciclónicos.Diz-nos que temos de aterrar em Punta Cana – República Dominicana para medir os estragos da aeronave e ver a possibilidade de voar para Havana – Cuba.

Começamos a preparar a aterragem, e agora já passageiros choram e conversam connosco. Muitos estão traumatizados, assustados... quase em choque. Tentamos acalma-los dizendo que é normal, que já nos aconteceu montes de vezes (que mesmo que não seja a verdade, pelo menos tira-lhes o pânico...)Eu continuo cheia de dores a arranjar coragem para algo que sei inevitável: tenho a clavicula deslocada e só há duas maneiras de a por no sitio – ou num hospital, ou num choque brutal como se faz no Judo.

Um hospital em Punta Cana, está fora de questão! O Luis pratica Judo desde miúdo e só está à espera da minha mentalização, para me dar um empurrão contra a parede, com toda a força, ao mesmo tempo que com a mão me empurra o osso para o lugar.Respiro fundo, lembro-me da força e digo-lhe que sim.Do resto não me lembro, porque desmaiei toda junta para os braços da Kátia que ficou encarregue de me amparar se isso se desse.

Estamos quase a aterrar.

A cabine começa a ficar agitada, as pessoas estão cheias de medo. Faz parte do nosso trabalho tranquiliza-los. As raparigas retocam a pintura, os rapazes compõem a farda, e estamos como se nada se tivesses passado.Estamos ali para assegurar assistência, segurança, conforto. O resto fica para depois – quando enfiarmos “os cornos” numa garrafa de Rum!Começamos a descer e eu já me sinto bem!Estou feliz! Sinto-me feliz! Viva! Desperta! Agradecida!Aterramos em Punta Cana e como estaremos cerca de duas horas parados, vamos deixar sair os passageiros para esticarem as pernas, fumar um cigarro e chorarem à vontade.

Mal aterramos, mesmo à minha frente, uma senhora descalça-se. Acho estranho, mas por vezes os pés incham e há pessoas que saem descalças do avião.Mas qual é o meu espanto, quando a mulher agarra no sapato e desata a bater no marido!!!!Parecia possuída!! Doida varrida!!! O Demónio!!!Dava-lhe tanta porrada, tanta porrada, mas tanta porrada, que o homem só tinha tempo de se defender com os braços no ar!!!Ela, à medida que lhe dava com o salto do sapato onde calhava, só berrava:

- filho da puta!!! Queres matar-me!!! cabrão!!!! Filho da puta!!!!


Eu e a Susana, estávamos parvas com aquilo!!! O que se faz numa situação destas? Como se acalma uma pessoa em histerismo depois daquilo tudo?Simples!A Kátia vem lá de trás a correr, chegou ao pé dela e deu-lhe duas grandas bofatadas no focinho que a mulher até estrabuchou!!
- Acalme-se já, sua maluca!!! - gritava a Kátia – vamos já a parar com isso!!!

Eu e a Susana ficámos parvas a olhar!! Isto não nos estava a acontecer!! Caramba! Depois de um voo destes, uma histérica a bordo.... NNNNÃÃÃOO!!!!A mulher acalmou-se, limpamos o sangue do homem que ficou de sobrolho e lábio aberto e fizemos o desembarque.

Toda a gente saiu e ficámos nós.

Nós.

O Avião.

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